Estranhezas infantis: Crónica II
Perdido no charco de sabe-Deus-onde, o rapaz começou a revelar preocupação pelo facto de a sua caminhada em direcção a Norte lhe ter colocado lama já pela cintura.
A galgada tornava-se difícil, maçuda e presa de movimentos, mas a resolução que o impelia a seguir em frente estava bem patente nas palavras que lhe ecoavam na cabeça.
Vocábulos ríspidos e ásperos, que lhe feriam a percepção, e que nem o cheiro fétido que o envolvia rasurava.
"Mataste a tua mãe, mataste a tua avó, queimaste o choupo do poço até à última lasca, revelaste uma completa falta de reverência pela vida dos teus mais próximos," esbraveou o seu pai, num misto de sanha e agoniante dó.
"Sabes o castigo que te espera, a ti e a todos os que cometem símiles actos... segue para Norte, sempre para Norte, e nunca noutro sentido... o teu rumo tratará de te punir com a devida medida."
A lama ascendia já ao peito quando o miúdo regressou do seu ciclo de azedume.
Os braços, esses, chafurdavam mais do que nadavam.
Atascava-se mais do que se andava.
E ficava a sensação de que o pântano, quase que com rancor, queria engolir o rapaz vivo.
Um horizonte de terra firme não se via.
A fadiga extenuava em extremos o pouco vigor visível.
E o ânimo decidiu dissolver-se mais ou menos na mesma altura em que o pânico decidiu dar de si.
A lama que dantes dava pelo peito dava agora pelos queixos.
O nadar a custo deu lugar a um apavorado esbracejar.
Pela boca, golfadas inteiras do lodo envolvente eram expelidas com o mesmo ímpeto com que haviam entrado.
E os pés falharam-lhe.
E o céu arriba desapareceu.
E a respiração cortou-se.
E o rapaz afundou-se.
E os sentidos perderam-se.
E, mais do que perder estes, o rapaz perdeu foi o Norte...