Não estou pai virado
A primeira coisa que me ocorre sempre que me lembro do meu pai é que ele já foi consumido de preferência antes de.
Finou.
Quedou-se.
Faleceu.
Quinou.
Definhou.
Cessou.
Extinguiu-se.
Perdeu o brilho.
Bateu as botas.
Expirou-se-lhe o prazo.
Desaguou noutras águas.
Acabou-se-lhe a medra.
Cortaram-lhe o gás.
Dorme o sono eterno.
Está a empurrar margaridas.
Soltou o último suspiro.
Foi para um sítio melhor.
Está a ver com quantos paus se constrói uma canoa.
Está a jogar à bola com o São Pedro.
Enfim, morreu.
O meu pai era uma pessoa muito peculiar, com ódios e ascos muito peculiares.
Lembro-me de duas das coisas que ele mais odiava serem canecas e a testa da minha mãe, e houve um dia em que ele tentou partir ambas as coisas ao mesmo tempo, arremessando uma caneca à testa da minha mãe.
Deu-se mal, que só rachou a testa da minha mãe, e ainda bem, que a caneca era uma das minhas canecas e era daquelas canecas que têm uma vaquinha em cerâmica lá dentro e quando um gajo enche aquilo de leite a vaquinha desaparece e eu tinha sempre a mania de beber leite de enfiada mas só o suficiente para deixar a cabecinha da vaquinha de fora do leite que era para ela não se afogar.
Outra coisa muito peculiar no meu pai eram os seus hábitos alimentares.
O meu pai nunca foi de gostar de boa cuisine. Sempre que a minha mãe lhe fazia um bom jantar, ele arranjava sempre uma desculpa qualquer assim meio esfarrapada, do tipo "Esta merda tem pouco sal" ou "Esta merda tem muito sal" ou "Esta merda tem sal" ou "Esta merda não tem sal", e acabava sempre por sair porta fora e ir comer jaquinzinhos com dois dias acompanhados de vinho carrascão para a tasca do Zé Tó, que era a tasca onde eu ia buscar as caricas para fazer os Grand Prixs nas bermas dos passeios com a malta da rua da minha avó.
E houve uma noite em que a minha mãe se passou e disse "Ai é, tem ou não tem sal? Então 'pera aí que eu já te fodo."
E fodeu.
Nessa noite, o meu pai chegou a casa e, amavelmente, perguntou ao ar "OLHA LÁ, O MEU JANTAR?" e o ar respondeu lá da sala "Está em cima do fogão," e o meu pai agradeceu com um "É bom que tenha e/ou não tenha sal" e levantou a tampa do tacho de forma a revelar a poia de merda - uma poia de merda minha, ressalve-se - que a minha mãe lhe havia deixado assim à filha da puta.
Nessa noite, o meu pai não jantou.
Mas a minha mãe, essa, comeu que se fartou. Levou uma carga de pancada tal que teve de ir de charola para o hospital.
Essa foi também a noite que ditou a separação dos meus pais.
As más bocas lá na rua não se fizeram rogadas.
Uns tomaram o partido da minha mãe.
Outros do meu pai.
Outros ficaram pura e simplesmente a ver o Júlio Isidro e o "Clube dos Amigos Disney". Eu, ressalve-se.
Havia quem dissesse que o meu pai não amava a minha mãe, e que estava com ela porque a tinha emprenhado sem querer - de mim, ressalve-se - na queca que lhe tinha despejado no sofá dos meus avós maternos enquanto estes tinham ido fazer o avio semanal de víveres ao Inô.
Frases como "Põe mas é essa merda a boiar no Tejo" corroboravam, na altura, essa teoria.
Frase essa que havia sido despejada da boca da minha avó paterna quando soube que a minha mãe, "essa puta" (palavras da minha avó paterna, não minhas), carregava a semente do enxerto do meu pai.
Mas não.
Eu não.
Eu não culpo o amor que o meu pai não tinha pela minha mãe.
Eu culpo o sal. O sal que ora a minha mãe punha a menos, ou ora punha a mais, ou ora punha ou ora não punha.
Daí que, desde a separação dos meus pais, eu tenha sempre pedido a salada por temperar.
E essa foi a primeira vez que o meu pai morreu.
Na altura, morreu só para mim e para a minha mãe.
Há três anos atrás, morreu para o resto do Mundo.
E há três anos atrás, recebi um telefonema da minha mãe a dizer "Olá filho, tudo bem, olha o teu pai morreu e tenho aqui um queijo de Serpa para ti. Quando é que vens cá a casa buscar o queijo?".
Essa foi a altura em que vi, pela primeira vez, a minha mãe como um ser insensível, tudo porque ela sabe perfeitamente que eu, queijo, só flamengo e queijinho fresco, que tudo o resto sabe-me é a pão com ranço.
Ela disse-me ainda que a minha tia, irmã mais nova do meu pai, queria saber se eu iria ao funeral no dia seguinte.
Disse que não, que era pouca sorte e que tinha planos inadiáveis.
E, no dia seguinte, lá estava eu nos meus planos inadiáveis.
Ali, na esplanada, com o resto do maralhal e o álcool disfarçado de cerveja.
E três filhos da puta de anos depois, é com uma filha da puta de uma indiferença que eu vejo e saboreio o filho da puta do facto de a filha da puta da família do lado do filho da puta do meu pai continuarem completamente fodidos com o filho da puta do filho dele.
E eu, ressalve-se, tudo bem.
28 Comentários:
meu... queijo de serpa? é que não se dá isso a ninguém.
meu...agora a sério, não posso dizer mais que isto.
upa lá!
essa foi com força!
Não tenham demasiado tacto, pá.
Esta história não é verdadeira.
...
Por acaso, até é.
A filha da puta da vida tem destas coisas de vez em quando...
Mas não é fácil comentar isto, não...
:/
este post tem bué asneiras Grassa... tens algum problema que queiras contar? alguma raiva em particular?
tirando isso... percebo-te e imito-te, mas a uma escala menor...o meu pai não tem família que o chore quando ele bater as botas xD por isso ninguém deve ficar particularmente chateado comigo xD
LOL!
Se eu tivesse problemas com este tipo de cenas, não as expunha.
Não precisam de agir como se eu fosse uma florzinha de estufa.
Embora eu seja.
Foda-se e cagarem para isso dos pezinhos de lã e bajularem merecidamente o Dótor Grassa por este belíssimo texto, não? Nada?
Foda-se, chavalo... Muito bom.
não consigo...
É impressão minha ou o A sente mais a falta do meu pai do que eu?
O meu pai cagou em mim tinha eu três anos.
O meu pai nunca me pagou uma pensão alimentar.
O meu pai cruzou-se na rua comigo tinha eu treze ou catorze anos e fingiu que não me conheceu.
Pior: meteu conversa comigo e fingiu, o tempo todo, que não fazia ideia de quem eu era.
O meu pai, quando lhe perguntavam quantos filhos tinha, respondia sempre um.
O da sua mulher até à sua morte.
Dizia isto a pessoas que me conheciam desde infância e que sabiam que ele me tinha a mim também e a mais um deixado na Inglaterra.
Tenha cá para mim que, se o meu pai não me quis, o meu pai não me teve.
E não me tem.
Fim.
lol
eu a tava a brincar, faltou a taga de sarcasmo. moço na boa, és uma pessoa altamente mesmo assim, mas tu não tinhas uma irmã? suponho que não seja do mesmo pai.
Tenho duas irmãs mais novas, frutos da árvore que a minha mãe e o meu padrasto criaram.
Frutos de duas podas, diga-se de passagem.
porra nem de fales das podas que os nossos pais dão. para mim os meus só podaram duas vezes, uma para mim outra para o meu irmão.
sou um gajo antiquado, eu sei.
O meu padrasto já deu tantas podas na minha mãe que nem sei como é que ela ainda não é um bonsai.
Ahahahahahahahahah...
Meu, ainda na semana passada estive a podar o meu bonsai (e estou a falar literalmente) e agora pus-me a pensar e acho que lhe mandei uma poda grande demais...
Será que estou grávido?
regaste-o no final?
Fertilizaste-o?
Sim.
E sim...
O que querem dizer com isso?
Que vais ser pai.
Mas aviso-te já: ele vai nascer um vegetal.
Menos mal.
Arranjo-lhe um quartinho azul-bébé e um vaso.
Azul bebé?
E se for uma vegetala?
hardcore.
a tua mae fez o que eu tantas vezes digo... ela realmente fez o que eu imagino mtas vezes ao dizer.. CAGALHAO! Nao gostas da minha comida? CAGALHAO.. vais-te embora? CAGALHAO... es um badamerdas pah.. CAGALHAO :)
E acredita... CAGALHAO é a soluçao para grande a maioria dos males.. so nao digo todos porque a maioria das pessoas sofre de prisao de ventre.. mas enqto tivermos à mao um cagalhao de um "amigo"... puto... é cagalhao para tudo mm!
é a vidinha... se bem ou mal a cama fizeres.. nela te deitaras... à parte disso.. julgar nao se faz.. prefiro a teoria do.. CAGALHAO :)
lindo.. Cagalhao!
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