Tintanic
Pescaram-na de um gélido mar de palavras.
Uma das poucas sobreviventes do acidente que ficaria para a História como uma das - se não a - maiores tragédias de sempre da Língua Portuguesa.
Apesar do estado quase fatal de hipotermia, ela não parava de gritar a letra dele.
"W! W!," solfejava ela, em claro delírio, entre tremidos e monocórdicos espasmos.
Na sua cabeça, refazia-se aquela fatídica noite em que tanto ela como ele haviam subido, dias antes, a bordo dele.
Ele.
O maior alfabeto latino de todos os tempos.
O maior abecedário dessa natureza tinha, até então, suportado apenas vinte e três caracteres.
Este levava mais longe a gramática e a opulência escrita: vinte e seis caracteres.
Haviam reparado, ele e ela, um no outro ainda no porto.
Cruzaram-se por tudo menos por acaso no deck principal ainda no dia do embarque.
Foram-se contextualizando aos poucos.
Havia pouca margem para erro: a tensão sintáctica entre eles era palpável.
Formavam a sílaba perfeita aos olhos de quem quer que os visse.
"Nunca nenhuma vogal me fez sentir o que tu me fazes sentir, E," dizia ele, enquanto no extremo da proa do abecedário lhe abria os tracinhos do "E" e a punha a voar.
"Sou a rainha da semântica!," berrava ela para o vazio do contexto.
Linguisticamente, tornavam-se um só.
Cada vez mais.
Ele pediu-lhe para o deixar desenhá-la nua.
"Tira o acento circunflexo. Quero ver como ficas sem acentuação."
Ela despiu-se de consonância.
Ele ficou consoante.
"Sem ti não sou nada. Sem ti, não sou pronunciado nem tenho sonoridade própria."
Fizeram amor e, por momentos, caligrafaram-se para o resto do Mundo.
Quis o destino, no entanto, que a tragédia lhes comesse o momento.
O abecedário, qual bêbado analfabeto à deriva numa cartilha, embateu de frente num Acordo Ortográfico.
A potência do impacto foi tal que o á-bê-cê rachou ali entre o eme-ene.
Os erros ortográficos começaram a abordar.
O pânico instalou-se.
"Vogais e minúsculas primeiro! Vogais e minúsculas primeiro!," era o que se ouvia no acesso aos escaleres que, inutilmente, tentavam extravasar o maior número possível de caracteres.
"Salva-te, E! Enliça-te num dos botes!"
"Jamais! Não irei a lado algum sem ti, W!"
Abraçaram-se no preciso instante em que a única metade ainda à tona da literária nau se afundou nas glaciais águas.
O medo de se afogarem em redundância de discurso fez com que ignorassem o regelo e esbracejassem até à superfície, onde se agarraram com unhas e acentos a uma arcaica figura de estilo.
"De-depressa, s-sobe aí para c-cima!," tiritava ele, enquanto a empurrava com forças que já lhe começavam a faltar.
À volta de ambos, centenas de grafemas em desuso imergiam para a morte ortográfica.
"M-mas... e tu?"
"Eu f-fico bem. T-tenho uma Termotebe vestida. Não te p-p-preocupes," ultimou ele imediatamente antes de a sua temperatura corporal bater abaixo dos trinta graus centígrados e da sua impressão gráfica se afundar, para todo o sempre, no salobro do que os rodeava, e apenas um pouco antes de ela perder os sentidos.
Apenas um pouco antes de ela, por ela, perder o sentido.
"Tenha calma, minha senhora," disse um dos caracteres que a havia retraído do mar, e que a retraía agora dos seus devaneios pelas mais recentes anamneses.
"Devia tentar descansar, e dar o tempo necessário à sua linha de impressão de recuperar a forma."
Mas já não havia forma.
Nem para ela, nem para tantos outros caracteres e vocábulos, facultatividades gramaticais e consoantes mudas, maiusculizações exacerbadas e acentuações diferenciais necessárias.
Nada mais seria o mesmo para ninguém depois daquele aparentemente inevitável e violento encontro com o maldito Acordo Ortográfico.
20 Comentários:
Brutal
la lalalala lalala lalala (Isto sou eu a fazer a banda sonora deste filme com música do Titanic)
Não faças.
- Chourisso, isto tá brutal!
Ok.
Mas eu gosto tanto de cantar esta música... posso cantar só mais um bocadinho? Posso? :(
Bendito tu!
Isto é um épico literário.
:)
Tá bem. Mas baixinho.
E só a trautear.
Uiiii ca bão!
:) Grazie! Prometo que ninguém ouve... :)
só agora tive tempo de ler isto.
épico, meu caro, épico!
Fico com a sensação que podia estar melhor, mas com estes retornos, já me sinto satisfeito com o resultado final.
essa sensação nunca desaparece. está excelente!
A perfeição é inatingível, portanto tudo podia sempre estar melhor. O que interessa é que está mesmo muito bom.
Devias dedicar-te mais a escrever textos com mais que um parágrafo...
Essa tua última sentença é pensamento recorrente aqui para estes lados.
Tenho dezenas de ideias pendentes que, por serem exigentes em termos de tempo, vão permanecendo pendentes.
Aos poucos, elas lá vão aparecendo...
Sei como é. Tempo, vagar, ensejo...
Porra. O senhor Grassa...sim senhor!
Mas, um E e um W? Isso é paixão proibida!!
E uma impossibilidade anatómico-literária. Já um V e o W, eh pah...xenxual!
Ps - senhor Grassa, deixou-me boquiaberta com a facilidade com que se perde no meio do alfabeto.
Eu gostava que o AO fosse o Bismarck, em que todos gritavam "Afundem o sacana!".
Grande texto, jove!
Vós sois demasiado gentis.
Isto é renda de bilros em palavras.
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