Retrato de um dogma
Era uma vez uma proposição.
Uma pequena proposição.
Um humilde conjunto de caracteres, expostos em prosa, sem qualquer expressão assertiva, que nem tão pouco submetia a apreciação um assunto.
Era uma proposição tão modesta que nem um tema possuía.
Apesar de assim ser, a proposição tinha uma existência agradável.
O seu pai, o vocabulário, e a sua mãe, a língua, precaviam-se de que nenhuma correcção gramatical lhe faltava, e proviam-na dos melhores termos.
Faltava-lhe, no entanto, o maldito tema.
E assim foi que, a determinada altura, a míngua proposição decidiu que queria ser algo mais.
"Quero crescer e ser alguém. Quero ser algo promissor. Nada de fastidioso ou prolixo. Quero ser assim como que um prolóquio, uma asseveração ou uma alegação com propósito. Quero ser mais do que uma simples conjugação de letras, espaços e sinais de pontuação. Quero ser... um dogma. Isso. Um dogma. Algo que o alheio, desde as opiniões mais concordantes às conjecturas mais teimosas, não possam tocar. Algo apresentado e aceite como indiscutível. Um dogma. É isso que eu quero ser."
Arranjou um pseudo-escritor como mentor e tutor, e o acordo foi mútuo: pelo poder da caneta, o seu guia literário a ela produzia e nela matizava os morfemas e os afixos dos vocábulos que a compunham, dando-lhes verdadeira acepção, e ela, como retorno, a ele servia como veículo para a palavra.
O ponto de vista gerava-se, a ideia ganhava fundo e o todo, com intuito, era criado com firme interpretação.
O poeta com veia de dramaturgo jogou com a restrita proposição, brincou com a sua formação lexical, moldou-a.
E, com o tempo de quem leva a redigir um postulado, a pequena proposição deixou de ser diminuidoramente adjectivada.
Abandonou a índole de se constituir pequena e sem significação, e acreditou-se séria paráfrase, sóbrio apanágio de uma porvindeira inclusão na premissa do seu tema.
O seu tema.
O tema que ela agora advogava.
Que ela favorecia.
Que o seu aedo lhe outorgou de cônscio intento...
Arte.
Com o doutrinante preceito de quebrar o abastado acolhimento da arte como algo de facilmente atingível, a outrora proposição imiscuiu-se na resolução dos tratados de discórdia relativos a essa concepção.
Evitou cair na gíria, na filologia do calão.
Ordenou-se em temáticos colóquios.
Empregou-se nas parangonas dos mais conceituados jornais e serviços noticiosos.
Reptou, por sinalefa, em passa-palavras informais e cafés de ocasião.
Defendeu que defender que a arte emana arbitrariedade e livre acesso é permitir a banalidade na justa criação.
Defendeu que a arte deve ser tirânica e de carácter minimamente inacessível, sob pena de se fragilizar à luz da manha do falso artista.
Arbitrou que lá porque algo é, de base, inatamente belo, não deve, forçosamente, constituir-se ofício da arte.
Defendeu-se e vedou-se nas anteparas das suas máximas mas, como tudo o que combate o fogo com fogo, acabou por se queimar nas achas da sua própria axiomática.
Mundo que é mundo é mundo de preconceitos, julgamentos e desleais alegações, princípios, fins, máscaras e contradições, e este mundo, o nosso mundo, não foge à sua própria regra.
Mundo que é mundo é cruel, e cria proposições para crescerem dogmas e dogmas para crescerem verdades, para que a verdade derribe o dogma e o dogma se prostre no apoucamento da sua natureza logrativa.
E pela natureza incontestável da verdade, o espírito da contemporaneidade artística ergueu-se e professou, com a pompa de quem se despeia da responsabilidade do dom e do engenho, que a arte está acessível por todos e para todos, livre de interpretações fixas e de especificidades, livre de regras que minem a essência amorfa de toda e qualquer criação artística, livre de pressões burguesas e de obstáculos à dubiedade que a adstrinja de poder alegar que é algo que pode ou não ser, livre de estimular emoções e sentidos independentes de técnicas ou estéticas, livre de utilitarismos desnecessários à livre manifestação abstracta.
E a pequena proposição apercebeu-se, com dolência, de que não é dogma algum.
Continua a ser uma proposição.
Mais madura, é verdade. Mais desenvolvida.
Mas igualmente errada. Mais falaciosa.
Menos verdadeira.
Com o decoro de quem se acanha perante o que a maioria dita, a desditosa proposição arrastou-se de volta ao local destacado para si na gramática portuguesa e ali ficou, sem nunca mais se submeter a apreciação, desconhecendo e ignorando por completo o facto de que a sua tentativa de adestrar um fiel conceito de arte apenas saiu intrujado porque tentar enquadrar e depreender racionalmente algo que é de ordem cem porcento intuitiva, como o é a arte, é penitenciar-se, logo à partida, a uma amarga derrota moral.
27 Comentários:
Grassa, apesar do meu extremo cansaço e depois de ter que ter recorrido ao diccionário, digo-te pá: tu sabes escrever!
tu já sabias que sabes, mas isto agora sou eu a dizer...
e clap clap clap!!!
(mas gostava de saber em que pensavas exactamente quando foste tocado pela inspiração!):D
O culteranismo (toma lá mais uma para ires ver ao dicionário) que emprego pode ser, tal como um dogma, falacioso no sentido de simular qualidade que o texto pode não ter verdadeiramente.
Mas esta já era uma ideia que vinha mastigando há uns anos.
Sempre me fez confusão o entendimento dado a "arte".
Sou um anti-arte no sentido que maioritariamente se lhe dá.
Simplesmente peguei na minha opinião sobre a coisa e a coloquei noutro sujeito, a saber: a proposição.
Agora vá: vai lá descansar, que amanhã também é dia.
E a qualidade dum escritor é ditado pelo nível dos seus leitores.
Nesse aspecto, sinto-me um Camões.
Mas com mais um olho.
é por isto que aqui venho!
moço! adoro quando me deixas sem saber o que deixar nos comentários. excelente demonstração de ideias!
Obrigado.
Fui eu mesmo que copiei de outro livro.
brilhante!
A regra nestes teus textos é serem teimosamente excepcionais, um a seguir ao outro. Fuckin' Perfect.
A excepção que confirma essa regra está só ali em "para que a verdade derribe o dogma".
Sou a tua Pilar del Rio.
li outra vez. porra! está fabuloso. e só acredito que tenhas copiado do livro:
"chouriço, um livro feito por grassa"
tanta gente aí a ter os blogues mais merdosos passados a livros e não sei como é que deixam passar este marco do blogue em português.
ka merda é estah. num precebi pevas. Tao a gozar comigoh ouh o k? kal arte kal carapusa,debiam tar a falare erah de mulherehs e mamash. seuhs tansos.
Very nice, Grassa! :)
Isso da qualidade de um escritor ser ditado pelo nível dos seus leitores é para eu deixar de aparecer? É que se for estás com azar, pá.
Muito bom, gostei muito.
Deixas-me confuso como é que alguém que tão habilmente copia isto para aqui e pelo outro lado só quer é afiambrar a tromba do próximo!? Como é possível esses dois seres coabitarem nesse corpinho de bebé de ar piçalhudo.
O Anónimo parece o Prof. Marcelo a falar, pá. Não tarda nada tens o teu blog em cima da mesa do telejornal.
Nunca tomem três cafés de rajada.
Pode dar naquilo.
Acho que tens de lançar a versão livrinho amarelo do post para o anónimo, mas em versão pita talk. Terá sido por isso que não percebeu? Hum...
Se ela fosse uma shoarma, papava-a toda.
E se fosse uma Bibá?
Fingia-me de deficiente e diria "toma aqui conta do bébé".
Fogo... Esta até a mim me assustou...
ouch.
Como é possível ter lidado contigo tantos anos seguidos e desconhecer esta tua faceta?
Espero pela tua saúde que estejas a referir-te ao Grassa.
Ela nunca me viu nu.
Logo, ela não pode conhecer "esta minha faceta".
Yap, ao Grassa lol By the way, acho que te vi quase nu... ahah
Quase?
O que é que queres dizer com "quase"?
Olha que uma meia enfiada no pénis não conta como "vestuário"!
Ficaste todo inchado quando acabaste de escrever isto, não? Releste e pensaste "foda-se que isto é mesmo bom", e depois inchaste.
E aposto que ainda andaste inchado uns dias valentes com aquela sensação inigualável de que se fez algo de mesmo bom.
Can't blame you. Nice. Very nice indeed.
Enviar um comentário
<< Home