Catarse
Estou de pé. Acho.
Sei que tenho cinco sentidos, mas não consigo perceber se estão a funcionar, nem a que percentagem.
Alguém me diz alguma coisa, mas as palavras atravessam-me como se fosse feito de água, e seguem o seu caminho para o oblívio.
Sinto um braço. Depois um abraço. Ouço a minha mãe. Quero a minha mãe. Quero voltar para casa. Mas não sei o caminho.
Tenho de andar. Sinto que se não andar vou ser engolido pelo solo. Toda esta realidade parece feita de areia movediça.
Dou um passo. Dois. Dez. Quantos?
Não sei onde estou. Mas não estou onde estava. Nem há forma de voltar.
Já está de noite. Agora é de dia. O tempo deixou de ser linear na minha cabeça.
Vejo uma sombra sobre mim. E em baixo. A toda a volta.
A sombra tem dentes? Espero que sim.
Deixo-a engolir-me sem qualquer resistência. Tragado por mandíbulas informes, a caminho do estômago de um qualquer animal inexistente e inidentificável.
Ouço as vozes lá fora. Não ligo. Não quero saber. Deixem-me em paz. Deixem este monstro digerir-me à vontade, e evacuar o que sobrar de mim.
Os olhos ardem-me. Deve ser dos sucos gástricos. Ou das lágrimas.
Há quanto tempo é que não durmo?
Eu tento. Eu bem o tento.
Fecho os olhos, mas nada acontece. Apenas mais trevor. E antes do descer das cortinas, ainda consigo vê-los. Os meus sonhos. E os teus, amor.
Os nossos, todos. A fugir.
E o tempo passa.
Quer queira, quer não.
Quer olhe para o relógio, quer não.
O tempo passa, e passa, e passa, e passa.
O que não passa é esta sensação de vertigem.
Como se estivesse a cair sem parar.
Estou farto.
Despacha-te, chão.
Quero abraçar-te com todo o peso da minha consciência.
Perco-me continuadamente nestes ciclos de pensamentos. De sentimentos.
E a cada ciclo, o porquê. Porque continuo aqui?
Depois olho para o lado e vejo-os. Aos três. A dormir. Colados. Unidos. Descansados.
Enroscados na segurança e no afecto que lhes forneço.
E lembro-me do que tu me pediste. Várias vezes.
Tu pediste.
E eu estou a tentar, amor.
Estou a tentar de tudo.
Mas não sei como educar estas emoções.
Não sei.
Se grito, é sem fazer qualquer barulho, porque a minha boca e os meus dentes insistem em permanecer cerrados.
Tenho vontade de destruir todas as mesas do mundo ao murro. Ou os meus punhos no processo.
De só parar quando o peso da tua perda for demasiado para conseguir sequer manter os braços erguidos.
Mas a realização permanece.
Já não estás aqui.
Nesta galáxia. Neste sistema solar. Neste planeta. Neste continente. Neste país. Nesta terra. Nesta casa. Aqui. Comigo.
Ia adorar que estivesses aqui.
Ou aí.
A minha vontade de estares aí, metafisicamente, a olhar para nós, não passa disso mesmo: de uma vontade.
Não há outros planos. Nem de existência, nem meus de vida.
Sinto-me claustrofobicamente cercado desta mortalidade.
Estou sempre a senti-la.
A ouvi-la.
Nas palavras dos outros.
"Mata esse processo."
"Não podes morrer para a vida."
"Estás um pouco mortiço hoje."
"Isto hoje está pela hora da morte."
"Temos de combinar um café. Morro de saudades tuas."
"Estou a morrer de calor."
"Então, estás vivo?"
Já pedi tantas e tantas vezes, e a tantas pessoas, para o evitarem. Para não o dizerem.
Mas não.
Não dá.
É inconsciente.
Faz morbidamente parte do discurso do dia-a-dia.
A morte continua nas vossas palavras. E na minha cabeça.
De cada vez que as dizem, vocês não as ouvem.
Mas eu ouço. Ouço-as todas. Nunca fui tão bom ouvinte.
E cada uma é um soco onde mais dói.
E a constante lembrança do porquê da tua ausência, amor.
Faz hoje três anos que partiste.
Faltas-me.
Mas pediste-me.
E eu vou continuar a tentar.
Todos os dias.
Tenho falhado. Todos os dias.
Mas vou continuar a tentar.
Até conseguir cumprir o que me pediste.
Será o meu último presente.
Para ti, de mim, que te amo, Dora.
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